Carta aberta ao Racismo Velado.


Por Fernando Garcia, do blog Divagar é preciso (http://garciarama.blogspot.com.br/) e
 Alessandra de Mattos, do blog Preta&Gorda (http://pretaegorda.blogspot.com/).



Atualmente, o negro, assim como outros grupos estigmatizados e estereotipados, pela sociedade, elite e mídia, aprendeu a ter consciência de seu direito ao respeito incondicional – até que se prove o contrário, claro. Isso assusta os reacionários que estavam acostumados a fazer suas “piadas” ridicularizando boa parte – maioria, na verdade – da população. É quando os sem talento alegam ‘censura’, ‘politicamente correto’ e outras formas de desqualificar a luta por respeito, como se o que tivéssemos até hoje já fosse uma beleza de igualdade e diversidade. Não, não para nós, só para eles, que nunca foram discriminados, inferiorizados e ridicularizados.

Pra descendentes de um povo que saiu das senzalas direto para os cortiços e favelas, não é engraçado ser tratado como um tipo exótico, subserviente e preguiçoso, vivendo às custas de “esmolas” do governo. Até porque, os que verdadeiramente mamam das tetas da Administração Pública estão lá se fartando sem censura.  Por isso, acho que o termo ‘politicamente correto’ deveria ser usado justamente por esses representantes do humor ofensivo, pois estão mostrando que aprenderam direitinho o que nossa política dominante sempre mostrou, ou seja, eles estão corretos frente ao que ‘seu mestre’ mandou.

Então, aconteceu, dia 3 de novembro de 2013, um quadro humorístico, (Baú do Baú) do Fantástico, em que o ‘repórter’ (Bruno Mazzeo) vai cobrir momentos marcantes na história, vai até o dia 13 de maio de 1888 cobrir a assinatura da Lei Áurea e sua subsequente comemoração. A princípio, parecia uma crítica à letargia a que a população foi condicionada pelo assistencialismo institucional do governo e placebos culturais, como o carnaval e o futebol – que são empurrados no povo como se fosse alento suficiente gritar em frente uma TV, para compensar as dificuldades financeiras da população, por exemplo.

Pegou mal, primeiro, porque não foi um ato de pura benevolência da família imperial (tida como a branca salvadora dos negros enquanto o negro Zumbi é difamado como um bandido), foram diversas pressões internas e externas para o fim daquela abominação naturalizada. O negro deixou de ser escravo apenas porque o sistema econômico baseado na escravidão fora extinto (por último, no Brasil) sem que houvesse políticas – como as cotas – para que o negro fosse incorporado à sociedade de forma igualitária. Provavelmente nem teria sido essa a intenção, já que tenta-se até hoje embranquecer a população através da miscigenação e a falsa ideia de que ela elimina a raiz afrodescendente de nosso DNA social.

Mas o mais grave do intento de domingo 3 de novembro, é que as bolsas do governo poderiam ser criticadas de N formas, inclusive usando qualquer pretexto social genérico (já que os difamadores das cotas raciais, por exemplo, sempre dizem que o problema no Brasil é social e não racial – como se uma sociedade racista criada à base de escravidão negra e índia não fosse um problema social), mas usaram a população negra. É notório que o 20 de novembro é muito mais representativo para a comunidade negra – pela vida, luta e morte de Zumbi por liberdade - do que o 13 de maio. Logo, só podemos concluir que a matéria em si, assim como a escolha da data de exibição, não foi aleatória, porque é um fato que não existe isso de “é só uma piada”, pois como toda peça de comunicação, uma piada é uma mensagem que carrega uma ideologia qualquer. Neste caso, o racismo velado do Brasil.


À medida que o negro vai obtendo êxitos sociais, vai ficando visível perante a sociedade, bem como o racismo também vai aparecendo. Muita gente é racista, mas nem percebe, só sente que é estranho o negro reclamar de algo que um branco não vive, ideia essa programada pela grande mídia, como se a tão celebrada “abolição” tivesse sido a própria medida de igualdade entre a população. Tipo, você não é mais escravo, toma esse Bilhete Único e vá ser feliz. Não, não é assim, ao passo que até os ex-donos de pessoas escravizadas receberam indenizações pra compensar suas “perdas”; e os imigrantes receberam incentivos financeiros para ocupar os lugares antes impostos a escravo, o negro saiu de mãos abanando.

A reportagem teve um viés crítico a medidas do governo como Bolsa-Família, Bolsa-Escola, Minha Casa Minha Vida e cotas raciais e sociais em instituições de ensino público. Pensei se não fora uma impressão minha. Mas, não, não pode ser encarado como mal entendido, pois, a emissora não tem 10% de negros em sua programação (talvez no Esquenta, o programa falsamente representativo, que só mostra ao negro que ele deve viver a filosofia “a gente se ferra, mas se diverte” e não aborda questões sociais vividas justamente pelo povo da plateia). Aliás, um dos diretores poderosos do jornalismo platinado, Ali Kamel, defende a mitológica democracia racial alegando que classificar parte da população como negra é dividir o povo, e ainda escreveu ‘Não somos racistas’, pra confirmar sua filosofia e propaganda ideológica. Se não somos, porque um elenco de uns 70 atores, em média, só apresenta, frequentemente, uns 3 atores negros? Não somos racistas porque não reconhecemos o negro como cidadão, né?

A Rede Globo precisa saber, definitivamente, o que significa representatividade. Não somos joguete midiático. Não somos moda, não somos palhaços, nem estamos mais dispostos a ser provocados diariamente com piadinhas subliminares acerca da nossa ancestralidade, nossa identidade. Não somos bobos da corte para entretenimento da elite. Não somos Black Faces, como a Regina Casé gosta de nos mostrar e pagar de representante da favela. Queremos espelhos para crianças, jovens e adultos, moradores das favelas, comunidades, guetos, vielas sim, mas que essas pessoas vejam exemplos de negros e negras que venceram dentro de um sistema feito para oprimir o negro.

Queremos que a nossa população, nosso povo, olhe para os bons exemplos. Que saibam e acreditem que o futuro pertence a nós também. Que somos capazes de sair de onde a sociedade, historicamente, nos colocou. Queremos que a imagem do negro deixe de ser vinculada apenas ao criminoso, o “ser exótico” ou em funções subalternas, como a TV adora mostrar. Já ultrapassamos as portas da cozinha há tempos, mas, pela mídia, parece que é melhor ficarmos recolhidos à nossa insignificância, pois é o melhor que teremos na vida.

Queremos ver o negro cotista, o negro que se formou – assim que teve uma chance -, a empresária preta, aquela que passou fome, lavava roupa pra fora e se formou em medicina... Queremos exemplos, pois isso vai ser visto por pessoas que vão entender que não há um lugar determinado pela natureza para cada etnia, isso sim é ser espelho e janela para a nação, isso é primar pela diversidade como se diz em teoria. Seu sistema elitista não vê racismo no país porque é dominado por um grupo social que nunca sofreu racismo, porque não precisou se unir e preservar sua identidade, o negro sabe como é isso, o índio sabe como é também.  


Queremos que a elite saiba que o preto, pobre, favelado tem a mesma capacidade intelectual de chegar aonde ele quiser e que não aceitamos de jeito nenhum o lugar que nos colocaram.  Queremos que os irmãos que estão desesperançados com esse desnível social e financeiro saibam que mesmo com toda opressão, a gente pode ser o que a gente quiser. Ninguém mais do que nós ficaria feliz em viver essa lendária democracia racial, o problema é que seu racismo é tão naturalizado na sociedade que as pessoas não o assumem. Como disse Patrícia Kogut, em uma matéria de seu blog: “Como expor o preconceito fingindo que ele não existe?”.

Portanto, diante de todos estes fatos, somados a uma imensa indignação com a total falta de respeito não tão somente da emissora de TV, mas também de toda uma população caracterizada por sua intolerância ao indivíduo preto; Por toda a falta de respeito que circunda o dia 20 de Novembro, sobretudo os dias que antecedem esta data; Por todas as vezes que o busto de Zumbi amanheceu pichado  justamente no Novembro Negro, por toda a violência racial que vem sendo praticada pela Rede Globo contra nós pretos e pretas, disfarçada de uma democracia racial que não existe, é que abaixo assinamos esta carta e levamos a público.


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Alê de Mattos/Preta&Gorda
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Fernando Garcia

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